Eu tive um sonho
Raymundo de Oliveira
Assim como Martin Luther King, eu também tive um sonho.
Em meu sonho, o Presidente Bush, face à gravidade da crise, convoca uma coletiva diante das televisões do mundo, onde vai ser anunciada a decisão americana, resposta à bárbara ação terrorista do dia 11 de setembro.
Começa a fala do Presidente:
Cidadãos da América,
cidadãos do mundo. Vivemos um momento da maior gravidade. Nosso País foi
atingido brutalmente. São milhares de mortos e centenas de feridos. Nossa Pátria,
estarrecida, espera a resposta.
Pensei muito !
Como responder à
brutalidade do ato, onde quase vinte jovens árabes se matam, causando a morte
de mais de 5.000 pessoas e destruindo bens de valor incomensurável ?
Como entender o que
houve ? De onde vem a raiz de tanto ódio ?
É com enorme
dificuldade que anuncio ao mundo minhas conclusões.
Não é à toa que tanto
ódio se acumulou contra nosso País.
O mundo ficou pequeno
pelas telecomunicações. Os fatos ficaram acessíveis a todos, num piscar de
olhos.
Os avanços
tecnológicos estão garantindo ao ser humano uma capacidade de realização
impensável há alguns anos.
Entretanto, todo esse
avanço não tem servido para acabar com a miséria, a fome, as doenças.
Vamos à Lua e aumenta
a população sem casa para morar. Produzimos computadores cada vez mais rápidos
e cresce o número absoluto de analfabetos no mundo. Desenvolvemos a engenharia
genética, desvendamos o genoma humano e, aos milhões, morre-se de falta de
saneamento, de doenças gástricas e de fome.
A tecnologia,
crescendo a produtividade, em vez de aumentar o lazer, concentra ainda mais a
renda, gerando desemprego e enfraquecendo as organizações dos trabalhadores.
Neste mundo em crise,
nós apresentamos uma insultante opulência, vivendo na sociedade do desperdício:
§
cada americano
produz 2 kg de lixo por dia;
§
temos 100 milhões
de carros com ar condicionado bebendo gasolina e poluindo a atmosfera;
§
enquanto nossa
população corresponde a 4,5 % da população mundial, consumimos 25 % do petróleo
produzido em todo o mundo;
§
ao não assinar o
Tratado de Kyoto, para proteger nossas indústrias poluidoras, ameaçamos a
sobrevivência do ser humano, como espécie;
§
cada americano
gasta 600 litros de água por dia, enquanto mesmo o europeu gasta 200 litros e o
habitante de Madagascar somente 5 litros por dia;
§
somos causadores
direto de ¼ de todo efeito estufa, que ameaça a vida em nosso planeta;
§
o consumo
energético de cada americano corresponde ao de 3 suiços, 4 italianos, 160
tanzanianos ou 1.100 ruandenses;
§
apesar de nossa
competência tecnológica, não temos tido respeito pelo planeta, sendo o 32o
em eficiência energética;
§
cada unidade de
nosso PIB consome, em termos energéticos, o dobro do que é consumido pela
França ou pela Itália.
E não é só. Fomos nós
que criamos Saddam Hussein e treinamos os Talibãs. É nossa a responsabilidade
por ditaduras sanguinárias como as do Pinochet, Trujilo, Garrastazu Médici, Somoza, Mobutu e tantos outros.
Mais de 500.000
crianças morrem no Iraque pelo cerco comandado por nós e o bloqueio à Ilha de Cuba já dura 40 anos.
É a nossa política,
com nossos aliados, que tem feito crescer o ódio entre judeus e palestinos. São
primos, e somente a convivência pacífica e respeitosa trará paz à região.
Por outro lado, é
preciso entender que é um perigo para a humanidade a crença de que irá para o
Paraíso aquele que eliminar o ser humano que não crê no seu Deus. Essas crenças
não serão superadas pela guerra ou pela violência, e sim pela construção, aqui
mesmo, de um mundo solidário, humano e fraterno.
Foi a crise dos
últimos dias que me fez abrir os olhos.
É preciso identificar
e julgar os terroristas.
O terrorismo não é
aceitável ! Nem o terror individual, nem o terror de Estado que temos praticado
sistematicamente.
É mais que hora de
mudar.
Estou, neste momento, convocando
todos os dirigentes das grandes nações, responsáveis, como nós, pela sucessão
de erros apontados, para uma reunião amanhã, quando iremos detalhar as medidas
capazes de reverter a situação de injustiça deste nosso mundo.
Convoco as nações mais
ricas a assumirmos para nós as dívidas do Terceiro Mundo, entendendo que
devemos, historicamente, muito mais a eles que eles a nós. Não é justo
continuarmos a carrear recursos dos países pobres para os países ricos, como
tem sido o resultado dessas escandalosas dívidas.
É preciso fortalecer o
papel das Nações Unidas no combate à fome, à miséria, à injustiça, onde se
incluem todas as formas de racismo ou perseguições decorrentes das crenças e
religiões. Ninguém poderá ser perseguido por sua raça ou crença, da mesma forma
que nenhum país aceitará que raça nenhuma ou religião alguma é superior. A
questão religiosa deverá ser considerada de foro íntimo e completamente
desligada da gestão estatal.
Todos os Estados
deverão ser laicos.
É necessário que todas
as armas de destruição maciça sejam destruídas e sua produção impedida.
As indústrias serão
convocadas a reverterem o processo de uso predatório dos recursos, da mesma
forma que os produtos industriais deverão ser produzidos de modo a serem
duráveis, superando a prática de produtos descartáveis de obsolescência
forçada.
É fundamental que a
natureza seja respeitada e seus recursos utilizados de maneira sustentável.
Estou propondo que as
Bolsas de Valores fiquem fechadas alguns dias, evitando uma corrida a elas, devido
às incertezas das mudanças, enquanto decidem-se os grandes rumos de nosso
Planeta.
No lugar da guerra, os EUA vem pedir desculpas por seus erros e propor a utilização das riquezas e da tecnologia para construir um mundo mais fraterno, humano, onde os homens sejam irmãos, sendo responsabilidade de cada um as condições de vida de todos.
O mundo ouvia atento. De todos os lados ecoaram aplausos. Todos estavam surpresos e otimistas, pela primeira vez em muitos anos.
Raymundo de Oliveira
Rio, 18 de setembro de 2001